terça-feira, 12 de abril de 2011

Caridade e Redenção


Um fariseu, buscando colocar Jesus à prova, pergunta-lhe: “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?” Jesus responde-lhe: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Este é o maior e primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás teu próximo como a ti mesmo. Nestes dois mandamentos se resumem toda a Lei e os Profetas”. (Mt 22, 34-40).

Caridade, conforme o dicionário Aurélio, significa “no vocabulário cristão, o amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem (...)”. Caridade é, portanto, amor ao próximo. Mas, o segundo maior mandamento fala de amar o próximo como a si mesmo, não mais, nem menos do que a si mesmo. Sendo assim, a caridade, na sua forma completa, significaria também a caridade consigo mesmo. E mais, talvez a caridade na qual há uma abdicação de si mesmo em proveito de outrem seja uma caridade desequilibrada, até uma não caridade.
Tudo isto pode parecer uma extrapolação teórica demais, até bizantina (lembrando as prolixas e improdutivas discussões dos teólogos de Bizâncio), mas, nós, psicoterapeutas, atendemos a várias pessoas que abdicaram de si mesmas. Pessoas que não conseguem dizer não aos outros, que têm dificuldade de tomar, sozinhas, decisões pessoais, às vezes até as mais simples, que “vivem” em função de outros, muitas vezes excedendo seus próprios limites físicos e emocionais para satisfazer a esses outros. Muitas delas têm Transtorno de Personalidade Dependente (F60.7 do CID-10). Costumam ser muito ansiosas e é freqüente terem dores crônicas em várias partes do corpo e, às vezes, “migrantes”, isto é, que mudam de lugar. Este não é um transtorno incomum. Tais pessoas precisam aprender a ser mais caridosas consigo mesmas, a se amar. Parecem até, embora inconscientes disto, idolatrar o outro (filho, mãe, pai, cônjuge etc.), “endeusando-o” e, com isto, renegando o primeiro mandamento – “não terás outros deuses diante de mim” (Êxodo 20:3).
O outro desequilíbrio é amar mais a si do que ao próximo. No extremo, isto pode significar o Transtorno de Personalidade Anti-Social (F60.2 do CID-10). Um nome mais conhecido popularmente que se dá à pessoa que apresenta este transtorno de personalidade é “psicopata”, ou “sociopata”. São pessoas que, ao contrário daquelas descritas no parágrafo acima, “endeusam” a si mesmas. Suas vontades e desejos, para eles, sobrepõe-se a todos. Os demais são apenas instrumentos ou objetos para elas, por isto podem roubar, enganar e, em casos mais graves, até matar pessoas sem sentir culpa aparente. Digo aparente porque, mais tarde (às vezes só após a atual existência) ou mais cedo, a voz da consciência moral (que acredito todos tenhamos como parte fundamental de nossa herança divina), ultrapassará todos os mecanismos de auto-engano em que a pessoa se envolveu e gritará aos seus ouvidos espirituais. Aí a dor começará a fazer o seu papel redentor (como nos lembra, p. ex., a história de Gregório, contada no livro “Libertação” de André Luiz).
Tudo isto me leva a crer que a caridade equilibrada – o amor ao próximo como a si mesmo – é, psicologicamente, a atitude mais saudável. E o que isto tem a ver com redenção do Espírito? Redenção é o ato de redimir, ou remir, que vem do latim, redimere, ‘adquirir de novo’. Um significado de redenção poderia ser, então, o ato de readquirir, readquirir a nossa ligação com a Essência Divina, ou seja, com Deus, o amor divino, expresso no primeiro maior mandamento.
Um outro significado de remir, ainda segundo o “Aurélio”, é “tirar do cativeiro, do poder alheio; resgatar”. Em termos espirituais, penso que significa nossa libertação, emancipação da tirania dos instintos. Os instintos, em si, são saudáveis, fazem parte do processo da Vida. Tornam-se prejudiciais apenas quando se sobrepõem à razão, à consciência maior. Neste caso, nos escravizam no egocentrismo, no qual o que importa apenas é nosso prazer e evitarmos tudo o que impede este prazer, ou seja, tudo aquilo que contraria nossos instintos. Já vimos acima que, no extremo, isto poderá nos levar, ao longo de encarnações, até o desequilíbrio da psicopatia. A libertação dos instintos, na prática, portanto, se dá pelo contato com os outros, pelo amadurecimento no relacionamento interpessoal, pela caridade equilibrada, ou seja, pela prática de amar o próximo como a si mesmo.
Um terceiro significado de redimir, ou remir, é “indenizar, compensar, reparar, ressarcir”. Espiritualmente, penso que um significado disto é que o processo de nossa libertação passa necessariamente pela reparação do mal que cometemos a outros, embora esta reparação possa começar, ou talvez até ser realizada inteiramente em proveito de terceiros, que não aqueles diretamente atingidos, pois talvez nem sempre seja possível a reparação diretamente àquele a que vítimizamos.
O início do processo de redenção começa ao tomamos consciência mais plenamente do mal que ocasionamos a outrem. Aí a dor redentora começa a atuar como um aguilhão, impulsionando-nos à reparação. E esta pode implicar, também, no perdão de atos que nos vitimizam atualmente, pois são, frequentemente, expressões da lei do retorno, “chumbo trocado” cujo início pode ter ocorrido em outra existência.
O perdão sincero é uma das belas expressões da verdadeira caridade que não ajuda apenas àquele a quem perdoamos, mas muito a nós mesmos.

Sobre mais sobre o perdão nas postagens: O Perdão que Liberta e Reflexões sobre o Perdão

2 comentários:

  1. Essa Redenção é que é a parte mais dificil da vida.. Por mais que voce possa querer se redimir se a atitude do outro não condiz com esta parte...
    O texto está maravilhoso gostaria muito de poder estar neste plano de atitude com a vida isso sem ser hipócrita... Deus abençoe o perdão ... e me faça aprender ... abraço!!!

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  2. CONCORDO, VERINNHA! PARA PRATICAMEMTE TODOS NÓS É UMA META ELEVADA. PODEMOS, NO ENTANTO, VE-LA COMO UMA META A SER ATINGIDA COM PEQUENOS PASSOS DIÁRIOS, UM POUCO A CADA DIA...
    ÀS VEZES CONSEGUIMOS PERDOAR QUASE DE IMEDIATO, OUTRAS VEZES PRECISAMOS DE ANOS DE ELABORAÇÃO (E ATÉ TERAPIA) PARA CONSEGUIRMOS PERDOAR ATOS DE ALGUMAS PESSOAS. MAS, VALE A PENA O ESFORÇO...
    ABRAÇÃO!

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